Capítulo 24

Mara pensa nas árvores de banyan que se espalham pelos lagos lamacentos e rasos de um mundo que jamais voltará a ver. Os medidores de ondas no capacete detectam a imagem e obedecem ao esquema de comando codificado que ela programou em todos os sistemas da tropa. Ela fala no canal do diretório de voo: — Voo. Chamada para a passagem final.

— DV. Voo confirmado.

— Navegação. Voo confirmado.

— Comunicações. Boa constelação. Voo confirmado.

— Geodésica. Voo confirmado.

— Bio. Voo confirmado.

Conforme os controladores de voo confirmam o estado dos seus domínios técnicos, Mara olha para o espaço pelos olhos sintéticos do sensório. As Fuselagens reluzem no céu branco-azulado da estrela, cada um uma vagem prata sustentada por imensos membros estruturais e encasulada em reservatórios de fluido inteligente espectralmente adaptativos: teoricamente o suficiente para sobreviver às horríveis forças do trânsito por uma singularidade. Mara se força a não virar o pescoço, mas acaba virando mesmo assim e sente uma dor terrível conforme procura o Distributário no céu.

Lá está ele. O mundo do renascimento dela, brilhando belo e azul como água, envolvido como um giroscópio em seus dois anéis. Mundo de Corsários risonhos, mundo de caçadas na floresta, mundo de montanhas tremeluzindo sob pálidas radiações de Cherenkov, mundo de lábios manchados de fruta e descobertas matemáticas puras como uma harmonia de ródio. Ela nunca mais o verá.

Mara pensa na mãe. Ela não quer pensar, mas pensa, e a memória a venda, abafa seus sentidos de modo que ela não ouve nada além da voz de Osana, naquela última noite. Elas estão embriagadas e a noite já virou manhã. Sentadas lado a lado, mãe e filha, observando o sol se erguer sobre as Crisêiades do pequeno sítio de Osana em meio à tundra.

— Não vou com vocês — diz Osana.

Mara temeu essa resposta por tanto tempo que acaba até soltando um risinho. Não pode ser verdade, é claro. É um pesadelo; um daqueles sonhos em meio ao estresse, onde os poderes de persuasão e manipulação falham. — Claro, mãe — diz. — Você tem um sítio para administrar, afinal. Quer mais?

— Não, obrigada. — Osana aperta os olhos para o amanhecer. Rugas discretas rodeiam aqueles olhos, uma codificação ilegível, ainda indecifrável apesar dos séculos de esforço de Mara. A luz nascente tira uma lágrima. — Você vai ter que se despedir de Uldren por mim. Ele não fala mais comigo.

— O quê? — Mara tem um sobressalto, como se fosse esse o choque verdadeiro, e não a perda eterna da mãe. — Por quê?

— Porque eu já contei a ele que não vou com vocês. Eu sou feliz aqui.

— Mãe — diz Mara, a raiva crescente —, eu também sou feliz aqui. Essa não é a questão… Uma conversa que não exatamente acabou, mas que se exauriu até se tornar um trapo emocional insustentável horas depois. Sem catarse. Sem conclusão.

De volta no presente: — Armas — chama Uldren. — Voo confirmado.

— Voo confirmado — confirma Mara. — O relógio vai contando. L menos cinco minutos. Bem diante da proa da Fuselagem dela, uma esfera de massa ultradensa espera o momento da implosão e colapso. Haverá apenas poucos momentos para atravessar o buraco de minhoca antes que ele desapareça.

— Voo, Sensores — diz Sjur Eido. — Vejo oclusões em campos estelares anômalos, coordenadas…

— Interceptar! — grita Mara. — São mísseis! Tinha que acontecer. Alguém tinha que tentar impedir a partida, alguma pessoa boa, pura como uma Paladina, que acredita estar salvando dezenas de milhares de Despertos da loucura e da perdição.

— Voo, DV. Abortar?

— Negativo! — exclama Mara. — A contagem regressiva está confirmada! Armas, interceptar!

Sjur Eido grunhe de raiva. — Eles vão conseguir passar — diz. — Cinco ou seis, no mínimo.

— Uldren. — Mara abre o canal pessoal com o pensamento do rosto dele. — Realoque suas armas para proteger o portal.

— Vamos perder Fuselagens, Mara…

— Eu sei. Faça. Mara abre a interface de comando para o portal e envia a imagem de um espinho ensanguentado. A contagem regressiva pula para zero. — Todas as naves, estamos abortando a contagem direto para o lançamento. Segurem-se!

Ela lança a ordem de lançamento de emergência.

As Fuselagens rangem com o empuxo. O traje de Mara é inundado por gel amortecedor. Ela pensa no rosto da mãe, procurando fixá-lo com exatidão na mente, e seu sensório tenta em vão abrir um canal com Osana. No momento em que a Fuselagem se lança na singularidade, a última coisa que Mara vê é aquela mensagem lamentosa de erro: Sem conexão. Sem conexão. Sem conexão. Não é possível conectar-se a Osana.